LIBERALITAS JULIA

Estórias d´Évora

sábado, agosto 19, 2006

ÉVORA no tempo comunista

"Pobre Alentejo, tão bom que era no tempo comunista.
Pobre mas honrado, pequeno mas feliz na sua pequenez.
E juntavamo-nos todos à volta da fogueira e sonhávamos com o mundo lindo de todos pobres a bem da revolução longínqua.
E se um não tinha calças, despíamos a nossas para ficarmos iguais.
E se outro era estúpido fazíamo-lo um dos nossos, ignorante mas leal.
E se outro nunca tivera nada (normalmente eram sempre muitos) dividíamos tudo muito parcimoniamente para que ninguém tivesse muito e todos tivessem o mínimo.
É nossa a expressão "dividir o mal pelas aldeias".
Se alguém ostentava riqueza chamavamos-lhe ladrão.
Os que não estavam connosco eram contra nós.
Era tudo tão bonito.
Apenas serviamos os que serviam a causa comunista.
Afinal percebia-se que nem era má a democracia.

Mas eis que as coisas mudaram.
As pessoas já não queriam só o direito a ter a cabeça levantada, também queriam carro e estudos e aí as coisas transformaram-se.
Os vencidos do capitalismo deixaram o que de mais importante tinhamos, o sonho. Cansaram-se de sonhar.
Tornaram-se materialistas, essas bestas.
Bem dissemos que o povo não se governa.
Tornou-se ingovernável. Isto da educação trouxe a exigência.
Já ninguém acreditava em nós, só os que para quem era já tarde admitir o erro.
Fomos sucumbindo.
Essa treta da democracia alterou as coisa.
Os nossos projectos de cultura, com fumo e cabelos sujos, tendas e latas coloridas desapareceram. A liberdade de criar (mesmo que por indíviduos sem criatividade) foi amordaçada.
O nosso Centro histórico velho mas lindo, as construções pobres mas sociais, o nosso teatro de leste que o povo não percebe porque nunca foi educado para isso, as nossas bases proletárias da metalo-mecânica, a nossa poesia do hiper-realismo revolucionário, tudo desapareceu.
A democracia era apenas uma passagem para a ditadura do proletariado, mas a porra do proletariado desapareceu.
Tantos anos a fazer Abril, sim porque Abril é nosso e de mais ninguém, e vimos a cidade passar para a mão dos traidores à causa do povo, os socialistas.
E como nunca gostámos muito da democracia, até porque ela parece não servir os nossos interesses, resolvemos apostar no quanto pior melhor.
Apostar no discurso da desgraça, da fome, da miséria.
Que nos interessa se o individuo mostra ser vencedor, cria emprego e riqueza?
Que nos interessa a moral e a fé que o homem deve ter em si?
Que nos interessa que a sociedade acredite que a solução está encerrada em cada um dos indíviduos?
Nunca acreditámos nele. Desconfiámos sempre dele.
O indíviduo não importa, importa o abstracto colectivo, esse ente quase divino que é difícil explicar a quem não tem fé.
Por isso acreditamos que o indivíduo deve ser combatido com todas as nossas forças.
Esse que recebe mandato pela maldita democracia tem de ser vilipendiado, caluniado, assassinado moralmente, subjugado ao poder da nossa força, porque nós não somos pelo diálogo, nós não somos pelo debate, nós não somos pela vã discussão.
O Socialismo Científico só precisa de ser seguido à risca.
Os males que dizem ter sido perpretados pelo comunismo não o foram por culpa dele, foram por culpa ou dos capitalistas que o não deixaram ser plenamente aplicado ou pelos revisionistas que o adulteraram.
O bom comunismo existe e parece não poder ser aplicado pelos homens comuns.
Nós somos bons, somos justos, somos honestos, somos inteligentes, somos moralmente sólidos.
Os outros não.
São ladrões, mentirosos, espúrias, biltres, mesquinhos, falsos e tudo o que de mau existe no indíviduo.
Nós somos bons porque somos resultado da vontade do todo (o nosso) e não o da vontade das partes.
Os judeus são maus, o dinheiro é mau, os americanos são maus, os socialistas são maus, a direita é hedionda (sobretudo quando está no poder), o futuro é mau, o mercado é mau, o consumo é mau, o macdonalds e a microsoft são más, os patrões são maus, os impostos são maus, a educação é má, as férias são poucas, os salários são maus, enfim, os outros são maus. E só o povo que nos admira é bom, o resto é tudo estúpido.
Viva a revolução, viva a reforma agrária, viva o Camarada Vasco, viva a colectivização e as nacionalizações, viva a ditadura do proletariado, viva Fidel Castro, Viva Lénine, viva a URSS e vivam os que têm fé.
É o que nos resta. "

Anónimo
Sexta-feira, Agosto 18, 2006