LIBERALITAS JULIA

Estórias d´Évora

sexta-feira, setembro 29, 2006

SARAMAGO, saneador do DN e a MOIRAMA

"Nós, europeus, estamos transidos de medo.
Paralisados, de cócoras perante selvagens analfabetos, fanáticos e obscurantistas, continuamos a apontar as baterias para os EUA, para Bush e para Blair.
Sabemos, mas fingimos não saber, que com Bush ou sem Bush, os nossos inimigos fariam precisamente o mesmo.
Não se trata de uma luta entre a administração norte-americana e o totalitarismo.
Não se trata de um enfrentamento entre o carácter do homem que ocupa o trono de Pedro e alguns extremistas desvairados.
A questão que todos queremos iludir é mais profunda. É civilizacional.
O termo é relativamente recente na história cultural do Ocidente.
Só deu entrada nos dicionários no século XVIII e só terá sido compreendido pelo Islão há pouco mais de duas ou três gerações.
Mostrámos-lhes a nossa civilização: a nossa literatura, a nossa música, a nossa arquitectura, a nossa Filosofia, a nossa ciência e tecnologia, as nossas instituições, o nosso ritmo de vida, hábitos, práticas, atitudes. Conhecem-nos, pois somos transparentes: estamos nos filmes que eles vêem, nas músicas que ouvem, nas roupas que vestem.
Sabem como lidamos com o amor, o ódio, o cansaço, a alegria, a tristeza e a mentira. Para um terrorista, somos um livro aberto.
Nós nada sabemos o que vai naquelas cabeças.
Eles sabem que no dia em que enterrarmos Handel, Mozart, Beethoven, Wagner, Chopin, Bartók, Miguel Ângelo, Goya, Picasso, Pessoa, Borges, Homero e Joyce estaremos mortos. Puseram bombas, mataram, mutilaram e infundiram terror no formigueiro das cidades em que vivemos. Mas isso não bastava.
A nossa civilização está dentro de nós.
Importa, agora, que tenhamos medo de nós próprios, que nos esqueçamos quem somos, porque somos e o que fomos.
Querem matar-nos o espírito, o direito à posse do que criámos, aquilo que fruímos, o que nos dá alegria.
Mozart morreu em Berlim.
Amanhã morrerão Descartes, Hegel, Kant, Hume, Voltaire; depois de amanhã o Velho Testamento será banido por contar as primícias do judaísmo e, logo depois, o Novo Testamento será ocultado se não lhe for acoplado o Corão, seu sucedâneo lógico e cronológico na Revelação.
Lá para os lados de Espanha, o pateta do Saramago pede um "pacto de não-agressão entre o Islão e o cristianismo".
Nas muralhas vacilantes de Bizâncio estão os inimigos.
Cá dentro, queima-se tudo o que pode ofender o inimigo."

Publicado pelo Combustões , 29 de Setembro de 2006