LIBERALITAS JULIA

Estórias d´Évora

quarta-feira, maio 09, 2007

O estado do ESTADO

"Caríssimo senhor Estado

Não sei se me vai ler, excelentíssimo Senhor, que se afirma, entre outros predicados, como Pessoa de Bem. Sei, sim, que ao longo destes meus 68 anos de existência por diversas vezes fui ludibriado pela Vossa astuta perícia em matéria de negociações. Parabéns por isso. Na minha condição de fraco, para não dizer nulo negociante – várias foram as situações em que, em linguagem vernácula, V.Exª. conseguiu enrolar-me. A última das quais – com reflexos para o resto da minha pobre vida. Falo da “pensão de reforma” que tiveram a caridade de me atribuir – cerca de 800 euros – sempre em trabalho efectivo como regente-agrícola, com cerca de 12 anos em Moçambique, a ganhar (e seguramente a descontar – porque trabalhava para V.Exª.!) mais do triplo do que os meus colegas que tiveram o bom senso de não abandonar o berço-pátrio.

Mais 4 anos, como vereador a tempo-inteiro da Câmara Municipal de Évora, “percebendo”- percebem? - no mínimo 5 vezes mais do que os ditos colegas da chamada função pública.

Pois bem, os meus descontos de Moçambique, com o abençoado tumulto da sua sagrada independência – não sei o que lhes fizeram. A dicotomia privado/estado – Caixa Nacional de Pensões/Caixa Geral de Aposentações – uma baralhação total em que não tive habilidade para me movimentar. Acenou-me V.Exª com os tais não sei quantos contos da “privada”, mais outros não sei quantos contos da chamada pública, e não tive alternativa que não fosse agradecer e abençoar a
Vossa benemérita e caridosa “Tensa”. Mas, fique sabendo, V.Exª. aproveitou-se da minha falta de influências, da minha notável falta de capacidade de manobra - para me ludibriar.

Ponto dois: Tenho carta de condução desde os meus 18 anos. Há, portanto, 50! E tantas têm sido as vicissitudes por que tem passado o seu processo de actualização, que daria uma excelente tese de doutoramento para qualquer estudioso de legislação. Pós-Código Romano. Ou de Hamurabi (para a circulação de carroças e afins, evidentemente!)

Pessoalmente devo confessar que só renovo a carta no dia aziago em que sou interceptado pela prestimosa Brigada de Trânsito. Com uma forte multa em cima, a última de que me recordo no valor de 25 contos, quando tripulava um velho Austin que não valia mais de 15.

Pois bem, actualizei o negregado documento em 2 000, por força da mudança do bilhetinho de cartolina avermelhada para o actual modelo de plástico – menos erosionável e mais fácil de acomodar. E foi-lhe atribuída validade até ao dia não sei quantos de não sei que mês do ano de 2003. Acontece que até 6ª.Fª. à noite (às duas da manhã – ver minha estória anterior neste Jornal) ou os meus documentos nunca foram consultados pela Polícia, ou, se o foram, nunca se aperceberam que a validade da carta expirara ou estava em vias disso. Azar meu! Brigada de Trânsito às 2 da manhã: é contra-ordenação, é CRIME, aplica-se multa, vai pra Tribunal, consultas diversas ao longo de uma hora – até, o meu leitor já sabe, a decisão final de configurar a infracção na moldura de CRIME.

Julgamento, Banco dos Réus, nervos à flor da pelel; Juiz jovem, simpático, conciliador, dadas atenuantes de não ter antecedentes criminais....este Tribunal decide absolvê-lo. Saio do Tribunal aliviado, com a sensação de que pela primeira vez na vida era bafejado pela sorte. Convido o meu amigo Cachapuz, que sacrificara uma manhã do seu tempo precioso para me acompanhar neste mau “transe”, para almoçar comigo e ao mesmo tempo trocarmos impressões sobre a estratégia a seguir para agilizar a tarefa de actualização do dito documento.
Deixa-me em casa a tempo de tirar a minha sesta habitual, após o que enceto diligências, telefónicas, com vista a acelerar o processo de revalidação. O 4º. Ou 5º. telefonema é para a Direcção de Viação e Trânsito, para confirmar os documentos necessários ao efeito.

Só que, surpresa das surpresas, sou de pronto informado de que, tendo a validade da carta terminado em 2003 – a única alternativa era tirar de novo a carta.
O que implica – já o sei agora – inscrever-me numa Escola de Condução à minha escolha, pagar à instituição a módica quantia de seiscentos e setenta e seis euros e DEZ CÊNTIMOS, frequentar trinta aulas de Código e ser proposto ao respectivo exame ( o que levará mais duas a três semanas), se tiver a sorte de aprovação esperar mais uns tempos para iniciar novo ciclo de 32 aulas práticas de condução, ser de novo proposto a exame e aguardar oportunidade para me sujeitar ao mesmo.

O que significa, com algum optimismo, cinco a seis meses de desterro num Monte à beira da Ribeira, sem poder pôr as mãos no volante de uma viatura automóvel. Nem mesmo para me deslocar à Escola e poder assistir às tais 62 aulas. Leitor meu, o que KafKa, o do Processo, não teria escrito, para nossa delícia e desassossego, se fosse hoje vivo, e neste Estado!

Senhor Estado,
seu pessoa-de-bem, seu simplex, seu avanço tecnológico, seu este, seu aquele..
Proponho este negócio, juro: Devolve-me, após renovação, a minha carta de condução e eu OFEREÇO-LHE um programa informático que fará chegar a todos os condutores desta Direccão Geral de Viação, mesmo aos infoexcluidos, um aviso, em tempo útil, de que a sua carta de condução tem um prazo limitado de validade. Por exemplo 1 mês

Não me fazem chegar anualmente um papelinho com o montante dos meus escassos rendimentos para inadiável processamento do IRS???
E olhe que há muito mais contribuintes do que condutores!
Beijinhos, senhor Estado! "


Terça, 08 de Maio de 2007 in Noticias do Alentejo